«O acordo (h)ortográfico» [Bagão Félix, JdN]

A língua, escrita ou falada, é a expressão viva da evolução social. Particularmente num mundo sem fronteiras, com novas formas de comunicação e de relação.

O português – a 5ª língua nativa mais falada – não foge a essa regra.

Mas uma coisa é a absorção de modificações que se vão verificando, outra é a sua imposição por decreto. O Acordo Ortográfico é o produto não de uma evolução natural e impregnada na prática, não de uma necessidade de defesa e promoção linguísticas, mas tão-só a imposição de iluminados, que o Estado avalizou, menosprezando posições diferentes e ignorando a voz do povo soberano.

O Acordo é também uma expressão de submissão às maiorias populacionais. Neste caso, do Brasil. Esquece-se que uma língua se enriquece na diversidade e se empobrece na “unicidade” por forçada via legal. Claro que há sempre prosaicas justificações mercantis (interesses?) em sua defesa e há quem vá ganhar com tudo isto.

Imagina-se o Governo britânico a uniformizar a grafia de vocábulos escritos nos Estados Unidos ou Austrália (v.g. “realise”/”realize”, “center”/”centre” ou “labour”/”labor”)? Ou o castelhano a adaptar, por lei, a escrita de certos vocábulos na Argentina?

Pequeninos geograficamente, teimamos em ser pequeninos patrioticamente. Dizia sabiamente Fernando Pessoa: “A palavra escrita é um elemento cultural, a falada apenas social”.

Adivinhem o que se quer dizer com “não me pelo pelo pelo de quem para para desistir”? Na rejeitada e antiga grafia escreve-se: “não me pélo pelo pêlo de quem pára para desistir”

Já não nos chegavam os agravos à nossa língua nas tv e textos públicos, eis que os tornam agora obrigatórios. Os “supônhamos” e “houveram” de braço dado com os “suntuosos” e os “contrassensos”.

Enfim, a lógica da batata. Ou da ” (H)ortografia”.

Bagão Félix

[Transcrição integral de artigo da autoria de Bagão Félix publicado no “Jornal de Negócios” de 10.01.2012.]

Nota: os conteúdos publicados na imprensa que de alguma forma digam respeito ao “acordo ortográfico” são, por regra e por inerência, transcritos no site da ILC já que a ela dizem respeito e são por definição de interesse público.

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4 comentários

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    • Helena Mendes on 11 Janeiro, 2012 at 17:22
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    Bravo! Não poderia arranjar melhor forma de o descrever. Esse (des)acordo ortográfico, que apenas confirma a falta de patriotismo e a nossa pequenez. Queremos ser sociais e deixar de ser culturais. Mas será que seremos, um ou outro? Aqueles que têm orgulho no seu país, têm certamente orgulho na sua língua. Sua, e de mais nenhum outro. Porque o Português do Brasil é deles e o Português de Portugal é nosso. Ou era. E não me cansarei de me manifestar contra esta perda de identidade obviamente manipulada por interesses que me são alheios. “EVIDENTEMENTE, O EVIDENTE MENTE”.

    Cumprimentos e um bem-haja.

  1. «…a sua imposição por decreto…»
    Não é por decreto, é por resolução; o conselho de ministros resolveu e pronto, vamos lá com esta coisa!…
    Pois bem, a ortografia do português está decretada, sim, pelo Decreto 35.228, publicado no Diário do Govêrno, I Série, Número 273, em 9 de Dezembro de 1945, e que dispõe no Art. 3.º:
    «Deverão obedecer às normas do sistema ortográfico unificado todas as publicações editadas em território português.»
    Ora é do Direito, da hierarquia das leis, que uma resolução da Assembleia ou do Conselho de Ministros não revoga um decreto-lei. O que chamam «Acordo Ortográfico de 1990» – supino atentado à cultura e à língua nacional e só por isso ferido de inconstitucionalidade – é uma nulidade e um aborto jurídico desde o cume à base da pirâmide das leis. E não unifica ortograficamente nada que não estivesse ‘de jure et de facto’ unificado em Portugal, antes pelo contrário, já que abre incautamente a porta à pluralidade e não à unidade gráfica do idioma no território nacional (e antigo Ultramar português), por via da plurigrafia dos vocábulos e do primado da fonética (no ‘Puôrto’ dizem ‘quarago’; quem vem agora dizer que o portuense fala mal e não sabe a pronúncia culta?!…)
    Se o Brasil rejeitou posteriormente o sistema ortográfico unificado a que deu o acordo em 43-45, é um direito que lhe assiste. Para mim o unificado unificado está. Até por força da lei.
    Cumpts.

    • Leonardo Meirelles Leite on 13 Janeiro, 2012 at 11:39
    • Responder

    NÃO AO ACORDO!

    Apenas uma observação: No caso de Espanha, a mesma alterou sua escrita em conjunto com as suas 20 ex-colónias e cedeu, inclusive, na acentuação e escrita de muitas palavras! Tais informações podem ser encontradas no sítio da R.A.E.

    Cumpts anti-acordistas!

    • Maria José Abranches on 16 Janeiro, 2012 at 16:10
    • Responder

    Felizmente vão aparecendo figuras destacadas da sociedade portuguesa, das mais variadas áreas e tendências, com “coragem” para dizer publicamente que “o rei vai nu”!
    Se todas as justificações apresentadas em defesa do AO são falaciosas, a de ele corresponder à “evolução” da língua de Portugal é sobretudo risível! Com efeito, tratar-se-ia duma “evolução” profetizada há cerca de 22 anos, em 12 de Outubro de 1990, tendo por horizonte e objectivo, no essencial (caso das consoantes etimológicas ditas “mudas”), a aplicação da ortografia brasileira, segundo as disposições do “Formulário Ortográfico” de 1943!!!…

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