A querela ortográfica? Que quer ela?

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Ainda o desacordo ortográfico

Por José Queirós

Reclamações e dúvidas sobre a orientação do PÚBLICO face às novas regras de escrita em português

Cinco semanas atrás, em crónica dedicada às inquietações de alguns leitores sobre a vontade do PÚBLICO em manter-se fiel à sua anunciada recusa de aplicar as normas do Acordo Ortográfico (AO), escrevi que presumia – não o podendo saber ao certo – que boa parte dos leitores simpatizasse com a opção assumida pelo jornal. Tal presunção baseava-se, como expliquei, no facto de receber numerosas mensagens manifestando apoio à posição do PÚBLICO, ou o receio de que ela possa vir a ser alterada face à aproximação da entrada em vigor do AO no sistema de ensino e na administração pública. Em contrapartida, nunca me tinham chegado reclamações contra a fidelidade do jornal à ortografia tradicional.Já não é exactamente assim. No próprio dia da publicação dessa crónica, escreveu-me o leitor Manuel Leal, a colocar-me, em mensagem escrita de acordo com as normas do AO, “a hipótese de o PÚBLICO receber mais cartas de apoio à orientação atual simplesmente porque tem tido grande êxito em afastar todos os leitores que (…) não se reveem na histeria dos opositores ao acordo”. É uma hipótese possível, mas que me parece pouco convincente. Tenho recebido por vezes cartas de leitores comunicando que tencionam pôr termo (ou que admitem fazê-lo) à sua ligação ao jornal, por um qualquer motivo de desagrado com a linha editorial ou algum trabalho jornalístico concreto, mas nunca por discordarem da posição adoptada na querela ortográfica. Por outro lado, a direcção editorial informa-me de que as reacções que lhe chegam sempre que o tema regressa com alguma força às páginas do jornal, como sucedeu nas últimas semanas, são esmagadoramente favoráveis à orientação vigente.

Mas reconheço não dispor de dados seguros para dar por certo o que presumo. E considero provável que a entrada em vigor do acordo nas escolas e na documentação oficial, certamente seguida pela adesão de outras entidades à mudança ortográfica, venha a revelar a existência de leitores que por enquanto não deram importância ao tema – por pouco o sentirem no seu quotidiano -, mas que poderão então questionar a decisão tomada pela direcção do PÚBLICO. Resta saber se tal acontecerá em número significativo, se esse número tenderá a crescer (nomeadamente entre os leitores mais jovens, que irão confrontar-se com as alterações da grafia no sistema de ensino) e se a eventual perturbação resultante das diferenças entre o português escrito no jornal e o que lerão noutros suportes irá sobrepor-se aos motivos substanciais que os levaram a preferir o PÚBLICO a outros órgãos de informação. Para já, e para além do leitor acima referido – que se propôs “dar voz aos (…) que se calhar gostariam de ver o PÚBLICO adotar uma atitude mais razoável em relação ao AO” -, devo registar a reclamação que me foi enviada na semana passada por José Carlos Marques, que acusa o jornal de prosseguir uma “campanha militante” contra o acordo.

Referindo-se aos artigos de opinião que têm vindo a ser publicados acerca do tema, este leitor considera existir uma “desproporção” no espaço concedido às “duas posições” em confronto, o que na sua opinião “vai além do direito que o jornal tem de fazer campanha pelas suas opções, pois esquece a obrigação de um mínimo de equilíbrio, como órgão de informação que é”.

Em carta anteriormente enviada à direcção do PÚBLICO, e que refere não ter sido publicada, José Carlos Marques escrevera: “Não ponho em causa que o jornal assuma no assunto uma posição oposta à posição oficial do país (…). Intriga-me, no entanto, que o faça de uma forma tão passional. Um jornal não ignora que tem leitores que não se identificam necessariamente a cem por cento com as suas posições.” E noutro passo: “Que o jornal adote a ortografia (…) “caducada” ou em transição, nada a objetar. Que a imponha em tudo o que é escrito pelos jornalistas do seu quadro, muito bem. Quanto aos colaboradores externos, parece abusivo que estejam sujeitos a “pedir” que se publique o que escrevem, como é seu direito, numa ortografia que é aquela que está em vigor.” Admitindo que “o acordo tem fragilidades”, o leitor conclui, no entanto, que “a forma como o PÚBLICO denigre a atual ortografia parece ultrapassar o razoável” e revela “sectarismo”.

O director adjunto Nuno Pacheco, que tem subscrito várias crónicas muito críticas para os defensores do AO, rebate as acusações: “A “desproporção” de que o leitor acusa o PÚBLICO nas posições face ao Acordo Ortográfico deve-se a uma coisa simples: são essas as posições que nos chegam, de leitores e comentadores. E reflecte outra realidade: é que do lado dos detractores do acordo há ainda interesse em discuti-lo, enquanto do lado dos seus apoiantes (que dão o assunto por legalmente arrumado) esse interesse só se manifesta quando os adversários vêm a público apresentar os seus argumentos.” Quanto às posições assumidas pelo próprio jornal contra o AO (veja-se por exemplo o editorial do passado dia 20, em que o acordo é descrito como um “atentado” contra a língua), este membro da direcção do PÚBLICO defende que a alegada “campanha” visa apenas “trazer à discussão aquilo que os defensores do AO não querem que se discuta: a sua razoabilidade e mesmo a sua legitimidade”. Face à acusação, feita pelo mesmo leitor, de que “os adversários portugueses” do acordo se julgam “proprietários de uma língua que há muito se escreve em partes do universo lusófono de maneira divergente daquela que defendem”, o director adjunto responde: “O argumento não colhe. Ninguém, a não ser os assinantes do acordo, se acha proprietário de coisa alguma. Quem acha possível impor por lei o que a prática não consigna são os seus defensores. Os outros, entre os quais se inclui o PÚBLICO, gostariam de ver consignadas de forma clara as variantes já existentes na grafia da língua portuguesa, em lugar de fingir, para efeitos diplomáticos de duvidosa utilidade, que a partir de agora há uma ortografia “comum”.”

Quanto à fórmula utilizada nos textos de dois cronistas do PÚBLICO (“a pedido do autor, este artigo respeita as normas do Acordo Ortográfico”), Nuno Pacheco explica nada ter de “abusivo”, já que “corresponde à realidade”: “É, de facto, a seu pedido (não tiveram que pedir, pediram e foi de imediato aceite) que tal se verifica, sem o mínimo problema.” E recorda, a propósito, que no semanário Expresso, e na sua revista Atual, também se pode ler, mas em sentido inverso, que determinados cronistas escrevem “de acordo com a antiga ortografia”. Assumindo-se como opositor à transformação ortográfica, o director adjunto do PÚBLICO questiona o que seria uma atitude “mais razoável” face ao AO, como pede, por exemplo, Manuel Leal: “Equivaleria a quê? À aceitação das regras, embora delas discordando?”

Respondendo ao argumento desse leitor – que também não concorda com “alguns aspetos” do acordo, mas considera que “mesmo assim contribui significativamente para o objetivo confesso de homogenização ortográfica do espaço lusófono, que deveria ser uma prioridade estratégica para Portugal” -, Nuno Pacheco contrapõe que “esse objectivo confesso é não apenas uma impossibilidade como uma descarada ilusão”. Na sua opinião, “não existe homogeneização alguma, porque mesmo com a queda forçada de consoantes mudas, acentos gráficos, tremas e hífens, é tal a quantidade de duplas grafias consentidas pelo acordo que falar-se em “unidade” é enganar-nos a todos”, dado que “o espaço lusófono já criou grafias dissonantes que vão manter-se e até mesmo acentuar-se no futuro”. Pensa, por isso que, “mais do que um falso caminho de sentido único, a escrita precisava de uma via que reconhecesse claramente o caminho múltiplo das suas naturais diversidades”. Enquanto provedor do Leitor, e como já aqui expliquei, não vejo motivo para criticar a opção do PÚBLICO nesta matéria, que é legítima e transparente. No plano da opinião, adeptos e adversários do acordo têm tido espaço para argumentar e contra-argumentar nestas páginas, e mesmo uma “desproporção” favorável aos segundos é compreensível, pelas razões aduzidas por Nuno Pacheco. A distinção entre informação e opinião no tratamento do tema tem sido assegurada. Parece-me provável que a atenção que lhe é dada no plano informativo, em contraste com outros órgãos de comunicação, seja em parte influenciada pela posição contrária ao AO assumida pelo jornal – mas com isso, julgo, têm saído a ganhar os leitores, qualquer que seja a sua sensibilidade nesta matéria. E creio que, estando a aproximar-se o início da aplicação oficial da nova ortografia, com todos os problemas que lhe estão associados, será até aconselhável reforçar essa atenção. Se há pouco mais de um mês a direcção do PÚBLICO admitia “que ainda é possível inviabilizar o acordo”, os sinais entretanto dados pela nova maioria governamental terão contribuído para retirar crédito a essa hipótese. Continuará, no entanto, a fazer sentido acolher um debate – político, cultural, científico – que não desaparecerá tão cedo. Não vejo motivos, por exemplo, para não ter sido publicada a carta em que o leitor José Carlos Marques criticava a orientação do jornal. Suponho, como referi acima, que o anunciado avanço da nova ortografia no espaço público poderá tornar a sua rejeição por este jornal mais polémica, a prazo, entre alguns dos seus leitores. Espero que nesse debate específico não seja esquecido que a qualidade do jornalismo não depende da opção tomada na querela ortográfica, embora dependa, evidentemente, da correcta aplicação da ortografia adoptada.

[Transcrição integral do texto publicado na página 55 da edição de 31 de Julho de 2011 do jornal Público, da autoria de José Queirós, Provedor do Leitor. Texto online disponível apenas para assinantes.]

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6 comentários

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  1. Muito bem! Agradeço imenso a posição do Público relativamente a este assunto, ao contrário de outros órgãos de comunicação que evitam a todo o custo o debate e (em especial, a RTP). De igual forma subscrevo totalmente o que disse Nuno Pacheco. E é de facto uma hipocrisia acusarem ser os opositores do desacordo a acharem-se donos da Língua.

    Espero que o Público continue a marcar a sua posição relativamente a este assunto, nisso terá sempre todo o meu apoio, e decerto o de muitos mais portugueses por este país fora. Agradecemos!

  2. Ainda não li tudo, mas desde já me cheira que o «Público» a querer ir de Herodes para Pilatos. Se é para lavar as mãos, melhor é brincar às democraciazinhas e recensear o «eleitorado», pondo-o a votar. O resultado pode ser sempre como as sondagens; à vontade do freguês. Se não, é decidir duma vez se a escrita é para ser portuguesa, brasileira, ou conforme chova ou faça sol.
    Ao depois leio o resto.
    Cumpts.

    • Maria José Abranches on 2 Agosto, 2011 at 16:56
    • Responder

    Mais uma vez, obrigada ao “Público”, por manter a sua opção de escrever em “português correcto”: a língua e nós, que a respeitamos, bem merecemos! E por não ceder à chantagem da “culpabilização”, levada a cabo por aqueles que não têm pejo de acatar a imposição silenciosa deste crime contra a nossa língua materna, por parte do Estado, de alguns “media”, editoras, etc. Sim, porque o português é, antes de mais e sobretudo, a minha língua materna. O resto, a sua “internacionalização”, “bla-bla-bla”, vem por acréscimo, com a condição de a respeitar. E agradeço a Nuno Pacheco em especial, cujo tom claro e firme “destoa” agradavelmente do característico hábito nacional de “assobiar [cobardemente] para o lado”, a ver se passa, esperando assim ficar de acordo com tudo e o seu contrário: nunca se sabe para que lado vai cair o poder de momento… Dito de outro modo: “talvez mas também, pode ser, eles lá sabem” (vulgo: “cujo que sim, cujo que não, neutro”!).

  3. Lido o artigo reconheço que o «Público» permanece firme. Enfim! Alguma atenção haveria de dar o provedor dos leitores às dores dos acorditas por haver jornais como o «Público» (e o «O Diabo, é justo que se refira), e gente de bem que não se verga servilmente à cartilha dum Poder amorfo demais para entender razões (e não «pose») de Estado.
    São posições inconciliáveis, contra e a favor do execrável «Acordo»; neste caso ou se é sério ou não se é. Quem é contra o maldito «Acordo» já expôs bastos e seriíssimos argumentos linguísticos e políticos que o haveriam de arrumar de vez à primeira, em havendo tino em quem rege a Nação. O governo não quer agora tornar atrás por crer em assim salvar a face num acordo internacional atabalhoado e trapalhão? Vai daí envereda numa agonia que não haveria de existir, que todos dispensávamos, e que por último trucida linguìsticamente o idioma, inventando dezenas de milhar de vocábulos não inteligíveis à primeira por um leitor treinado e fabricando do nada outras tantas grafias divergentes?! E como supremo descaramento e insulto à inteligência publicita o cozinhado brasileiro como uniformização gráfica do Português? – Que uniformização é esta que atira gratuitamente telespectadores de radiotelevisão furiosamente (e legìtimamentemente) contra o provedor dos mesmos por este os passar de repente a ferrar de «telespetadores» à força de tão sublime uniformização do Português?! Antes da brilhante asneira «uniformizadora» só havia «telespectadores»…
    Cuido ser escusado dizer mais. Os acorditas são gente que não percebe; que não há nunca de perceber. Deixá-los! Todo o tempo de antena ou espaço na imprensa é prejuízo. Mas é lá com o «Público». Para mim já têm voz de mais; tudo o que lhes saia é supérfluo e insultuoso. A campanha, do «Público», d’ «Diabo» e de todos quantos se não sintam bem em atoleiros de mediocridade, é necessária para neste particular desmascarar a incompetência linguística e o sofisma político dos acorditas. É necessária e de todo em todo legítima pois que concorre para o melhor então para o pior; enfim, para o bem comum. O Português é um bem internacional que Portugal jamais poderá remir a cifrões, sob pena de se perder. A língua não é a nossa pátria – isso é poesia -, a língua somos nós. Fosse a questão ortográfica um artigo de mercearia não teria já há muito o Brasil podido ser comprado? Pois se se não vendeu, já vedes…

    Nota: antes que lembre a alguém apontar-mo, 1) «acordita» é, no meu léxico, substantivo comum de dois para designar pessoa sectária do «Acordo»; faz parte da evolução natural da língua e não é preciso que conste em vocabulários (peudo-)académicos nem de «Houaiss» nenhum para gramatical e portuguêsmente existir; 2) os acentos graves («portuguêsmente» incluído) são deliberados; depois de 45 renego acordos ortográficos com o Brasil.

    • Paulo Ramos on 4 Agosto, 2011 at 3:56
    • Responder

    A minha simpatia e o meu apoio TOTAIS ao «Público» e a todas as outras publicações que se recusam a aderir a uma monstruosidade que dá pelo nome de AO. Não me oponho a uma revisão da ortografia portuguesa de Portugal (por exemplo: não percebo por que razão Pêra tem acento circunflexo e Peras, já não necessita do tal acento), mas sou totalmente contra um pretenso acordo que, em vez de estipular, deixa tudo em aberto e dá azo a tanta asneirada. Além do mais, Português de Portugal e Português do Brasil são duas línguas separadas por quase dois séculos que evoluíram e seguiram caminhos diferentes. Os respectivos governantes que as continuem a deixar evoluir e não pretendam uniformizar aquilo que já é IMPOSSÍVEL unir

  4. Eu uso os acentos como os aprendi. Òbviamente.
    Parabéns pelo excelente artigo.

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