Quem rege a escrita?

Orthographia da Lingua Portugueza

 Há dias transcrevia-se aqui, em palavras da Priberam (um editor de dicionários), que “o texto do Acordo de 1990 não prevê soluções para muitos dos problemas que cria”. Em havendo pingo de senso neste país, só por si isto seria razão para arrumar de vez com a aberração. Mas não, e o cúmulo é vermos um editor de dicionários à nora para se conseguir desenvencilhar do texto do Acordo dizendo e repetindo em desespero que o dito acordo “é lacunar, ambíguo ou incoerente”.

 Em 29/1/2011 Helder Guégués, no blogo “Assim Mesmo” (“O prefixo «re-» no A.O.L.P.”, post 4372), apontava ao corrector da Priberam um erro de hifenização nas palavras com o prefixo re- quando se lhe seguia palavra iniciada com a mesma letra. Dias depois (“Diz a Priberam”, post 4387) justificava-se longamente Helena Figueira, do Departamento de Linguística da Priberam, com a letra do texto da Base XVI, 1º, alínea b) do Acordo Ortográfico de 90, que é inequívoco relativamente ao uso de hífen com um prefixo que termina na mesma vogal com que se inicia o elemento seguinte; dá uma única excepção: o prefixo co-. A interpretação que a Priberam faz do texto da Base XVI é a única possível. A leviandade com que foi redigido o Acordo de 90 parece que acabou por introduzir no Português formas tão extravagantes como re-eleger, re-embolso, re-encarnação, re-encontro, re-entrar.

 Parece mas não foi.

 O Brasil, usando da prerrogativa que lhe assiste já do costume de não cumprir nenhum acordo ortográfico, cozinhou unilateralmente uma excepção à Base XVI no seu V.O.L.P. (o tal que foi solenemente oferecido ao Presidente da República Portuguesa e que este subservientemente se dispôs a receber). – E fundamentado o Brasil em quê para introduzir uma excepção não acordada ao Acordo? – Ora vede lá bem: “por coerência e tradição lexicográfica” (*). A mesma coerência que decepa consoantes etimológicas e conserva o ‘h’? Ou a que dita epiléticos sofrendo epilepsia e egípcios habitando o Egito? E a tradição lexicográfica é a que nega a Portugal o primado do idioma?!…

 E posto isto em que ficamos; com o Acordo ou com a Academia Brasileira das Letras?…

 O vocabulário do I.L.T.E.C. (o do governo do eng.º Sócrates) fez tábua rasa do texto da Base XVI acerca do prefixo re- e segue a cartilha brasileira. E “os recursos linguísticos da Priberam têm vindo a ser alterados desde 25 de Janeiro de 2011 para seguir a excepção instituída pelo V.O.L.P. da A.B.L.” – O ano lectivo, pois é…

 Pois bem, mas se o texto do Acordo é para fazer gato-sapato, que regerá ele afinal?

 Ora, nada! A Academia Brasileira das Letras e cada burro escrevem por si.

(*) Nota explicativa ao V.O.L.P. da Academia Brasileira das Letras, pp. LI a LIII.
Imagem de Internet Archive, Open Library.

[Este “post” foi redigido pelo autor do blog Bic Laranja, a nosso convite, tendo sido também ali publicado em simultâneo.]

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7 comentários

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    • Maria José Abranches on 22 Fevereiro, 2011 at 18:35
    • Responder

    Este AO é notoriamente um instrumento muito válido do ponto de vista científico, como também se pode deduzir dos parágrafos seguintes:

    “Um texto legislativo é concebido de forma abstracta e não é pensado para resolver casos concretos. Como outros textos legislativos, o texto do AO é vago na sua formulação, carecendo de interpretação quando aplicado a exemplos específicos.
    O texto do AO faz, ainda, depender grande parte das opções tomadas de factores históricos, por um lado, e de factores fonéticos, por outro. O respeito integral por estes princípios pressuporia a existência de dicionário(s) histórico(s) da língua portuguesa e de vocabulário(s) ortoépico(s) actualizado(s).
    Além disso, o texto do AO, solução de compromisso relativamente a versões anteriores, contém omissões, contradições internas, uma selecção discutível de exemplos e não revela por vezes fio condutor de natureza linguística, sustentado por avanços recentes da Linguística Portuguesa e Brasileira. *
    Se numa situação normal de mudança ortográfica se torna necessário, para o uso das novas regras, um Vocabulário Ortográfico que as aplique em concreto às palavras da língua, na situação que acabámos de descrever esta publicação torna-se imprescindível.”
    (citação retirada de “Vocabulário Ortográfico do Português”, in Portal da Língua Portuguesa, com a correcção ortográfica necessária, visto que aí já se aplica o AO)

    E por que razão estamos nós metidos numa situação “anormal” de mudança da nossa ortografia? Justamente sobretudo da “nossa”, do português europeu, a norma original, há mais tempo definida, normalizada, consolidada e estudada? E até agora referência para os outros países lusófonos, com excepção do Brasil, por razões óbvias de afirmação da sua identidade, de “nacionalismo linguístico” (a expressão é dum professor brasileiro, Maurício Silva). Já pensaram na imensidão do Brasil, na variedade de línguas aí existentes, na dificuldade de alfabetizar eficazmente uma tão numerosa e diversificada população?

    Nesta “pressa” súbita, que acometeu os nossos decisores políticos, nem os termos do próprio Acordo assinado em Lisboa a 16 de Dezembro de 1990 foram respeitados!

    Não foi elaborado o tal “vocabulário comum da língua portuguesa” que deveria estar pronto antes da entrada em vigor do Acordo:
    “ Artigo 2.º – Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração, até 1 de Janeiro de 1993, de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas”.

    Quanto ao Artigo 3.º – que estipulava que o Acordo entrasse em vigor “após depositados os instrumentos de ratificação de todos os Estados junto da República Portuguesa” – tem agora “nova redacção” pelo “Acordo do Segundo Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa”, assinado em São Tomé a 25 de Julho de 2004:
    “Artigo 3º – O Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa entrará em vigor com o terceiro depósito de instrumento de ratificação junto da República Portuguesa.”
    E isto com a justificação de que “se adoptou a prática, nos Acordos da CPLP, de estipular a entrada em vigor com o depósito do terceiro instrumento de ratificação”! Pergunta ingénua: a soberania nacional não terá nada a ver com isto?
    Cumprimentos,
    Maria José Abranches

  1. Só pelo prazer de ler as coisas que por aqui se vão escrevendo já se pode dizer que nem tudo é mau no AO90. É isso e é um outro mérito ainda mais óbvio do dito, que, por mais criminoso que seja, nunca poderia ser totalmente negativo, como manda a ordem natural das coisas: de facto, as pessoas falam da Língua e da ortografia hoje mais do que nunca. Isso ninguém pode negar.

    Parafraseando um conhecido “jingle” publicitário: se podíamos viver sem o “acordo ortográfico”? Podíamos, e vamos viver; mas já não será a mesma coisa

  2. @ Maria José Abranches
    Nesta pressa sobressai a alma mercantileira do governo do sr. eng.º relativo (acuso-o directamente porque nenhum dos anteriores tirou o aborto gráfico do banho maria em que cozia); sobressai uma laboriosa incompetência na redacção do tratado da ortografia e; sobressai a natureza infame de reles tratantes que nem a letra dos tratados que firmam honram.
    Como pode gente desta ter pensado sequer em redigir um tratado ortográfico, Jesus!…

    @ J.P.G.
    A verdade é que até o que parece louvável no aborto gráfico é péssimo. A menos que a nossa iniciativa chegue ao parlamento e marque um ponto a favor da endeusada democracia – quando até aqui nunca os donos dela permitiram que este debate fosse feito com seriedade em sede política, nem o mero bom senso motivou debate ou simples trabalho acessório em sede própria (a Academia das Sciencias e o vocabulário ortográfico comum)… Está a ver aonde quero chegar? O caso da marca mais notória da indentidade portuguesa, o nosso idioma pátrio, chega a este triste ponto de ter que haver um iniciativa legislativa de cidadãos porque a própria voz dos cidadãos da comunidade é ignorada na defesa da sua identidade e do seu idioma pelos arautos dos altos valores democráticos (os ‘media’) e pelos seus representantes num parlamento eleito.
    Só estou à espera de juntarmos as assinaturas que faltam para ver corar de vergonha os afidalgados «representantes da nação». Por isso exorto quem leia estas palavras e que se sinte ultrajado com o desserviço que é o Acordo Ortográfico de 1990 a assinar e divilgar esta nossa iniciativa legislativa.

    Cumpts.

  3. @Bic Laranja,

    Isso de os PM anteriores a Sócrates terem deixado o AO90 “em banho-Maria” não é bem assim. Foi Santana Lopes quem o assinou em 1990. Foi Cavaco a promulgá-lo (no sentido técnico do termo, claro) em 2008. As “negociações” prévias envolveram, em perfeita salada russa, ambos os Partidos do chamado “centrão”.

    O mérito de que falei, quanto ao AO90, é uma inerência – digamos assim, fortuita – não intencional (bem pelo contrário, a intenção era qualquer coisa menos isso) e totalmente inesperada. Foi como um terramoto que descobre riquezas escondidas há milénios, por exemplo. Nunca tanta gente se tinha interessado pela Língua, pela ortografia, pelo vernáculo (canónico) e, no caso da ILC (até porque inédita), pelo verdadeiro exercício dos direitos de cidadania.

    Saúde.

  4. Tem razão em que agitou as águas, mas recorda-me que já em 1986 o assunto deu brado (a propósito; que é feito do Esteves Cardoso agora?…). Na verdade – e há-de concordar – a grafia do português não era caso. Mas é que não era mesmo.
    Obrigado por me desvendar melhor as coisas.

    • Rui Valente on 23 Fevereiro, 2011 at 2:59
    • Responder

    Espero enganar-me, mas não tenho assim tanta certeza de que consigamos levar a ILC a bom termo. Seja por ignorância, seja por simples preguiça, o país perdeu a capacidade de se indignar.

    1. Bem, e mesmo que tenha razão (esperemos que não), nem isso chega para que desistamos. O que aliás seria (não) fazer o mesmo de que nos “queixamos”…

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